No mês que marca o 60º aniversário do golpe cívico-militar que derrubou o presidente João Goulart e deu início a uma ditadura de 21 anos no Brasil, Dênis Roberto Villas Boas de Moraes apresenta a quinta edição de seu livro A esquerda e o golpe de 1964, pela editora Civilização Brasileira, do Grupo Record.
A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe / IHU
O autor já traçou importantes biografias, como as de Henfil (O rebelde do traço), Graciliano Ramos (O velho Graça) e de Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha, cúmplice da paixão). A nova edição de A esquerda e o golpe de 1964, considerado um clássico, chega como “quase um novo livro”, nas palavras de Moraes.
O escritor, jornalista e professor associado aposentado do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), nesta entrevista ao Extra Classe, vai além de falar sobre sua obra para estabelecer ligações entre passado e presente.
Ele traça um breve paralelo entre a derrota da esquerda em 1964 e a derrota da extrema direita personificada em Jair Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022 e na tentativa de golpe que culminou com a depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.
São contextos históricos e políticos distintos, reflete o autor, que vê em 1964 um golpismo militar e civil que “jamais se apoiou em ações improvisadas”.
Dênis de Moraes é Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, França) e pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina).
Eis a entrevista.
Completando 35 anos do lançamento do seu livro, qual é a sua expectativa com esta nova edição?
Eu diria que é quase um novo livro, pois se trata de uma edição revista e substancialmente ampliada. Mantive os focos temáticos, os eixos de análise e o estilo narrativo da edição original, porém modifiquei capítulos, reelaborei várias passagens e, principalmente, introduzi conteúdos inéditos e novos depoimentos de personalidades relevantes do período pré-1964, como os de Frei Betto, do ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio, dos jornalistas Jânio de Freitas e Milton Temer (à época, primeiro-tenente e ajudante de ordens do ministro legalista da Marinha) e da historiadora Marly Vianna. Também atualizei as pesquisas em arquivos públicos e privados, entre os quais o do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), hoje sob a guarda do Arquivo Nacional; o acervo online com informes confidenciais da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), liberados à consulta nos últimos anos, e os relatórios da Comissão Nacional da Verdade. Com tais acréscimos, procurei reavaliar questões significativas do período e incorporar outras visões críticas sobre os acontecimentos que culminaram no golpe de Estado.
Daria para se dizer que o golpe de 1964 ainda demanda muita informação e questões a serem esclarecidas?
Sem dúvida, o conhecimento sobre o golpe ainda precisa ser ampliado, não apenas para que as novas gerações tenham a exata noção do que ele representou em termos de retrocessos para o país, como também para pôr fim às mentiras e falsificações remanescentes da chamada “história oficial”, elaborada pelo golpismo com o objetivo de impugnar o ciclo de transformações em curso até 1964. Sessenta anos depois, certas ressonâncias deletérias da ditadura militar ainda podem ser identificadas em práticas autoritárias, medidas antissociais e ameaças à ordem democrática.
Você está falando de quê, mais especificamente?
Do que vivenciamos nos sombrios anos do bolsonarismo. Daí a necessidade de restabelecermos a verdade histórica sobre aquele tempo de liberdades democráticas, de intensa participação popular, de renovação da cultura e das artes e de mobilizações voltadas a uma efetiva democratização da vida social, econômica e política. E mais: reavaliar o governo Goulart e a própria conduta do presidente. Mesmo não sendo de esquerda e, muitas vezes, refém de suas próprias hesitações, Jango vinha atendendo, embora parcialmente, a demandas das forças progressistas, como, por exemplo, o reajuste de 100% do salário mínimo, o decreto de desapropriação de terras federais para a reforma agrária e a regulamentação da remessa de lucros das multinacionais para o exterior – medidas por ele sancionadas entre janeiro e março de 1964. Por outro lado, Jango se foi sem deixar suficientemente claro se pretendia ou não encontrar uma saída extralegal para continuar no poder, e por que desistiu logo de resistir ao golpe.
O que você poderia nos falar sobre os aspectos do golpe, além das óbvias ligações com o período da Guerra Fria?
O processo que levou à derrubada de João Goulart resultou de uma trama política-ideológica-militar-empresarial-midiática, que obedeceu a um planejamento estratégico bem definido, inspirados nos ditames da Guerra Fria e do anticomunismo. O propósito era debilitar e, afinal, depor um governo democrático e popular – que não contava com uma base parlamentar coesa -, com a finalidade de reorientar o modelo de desenvolvimento de acordo com os interesses do grande capital nacional e internacional e do imperialismo americano. Explorou-se ao máximo o quadro geral de crise econômica e de radicalização política. A escalada da conspiração se desenrolou através de táticas de manipulação e persuasão junto à opinião pública sobre os riscos de uma suposta “esquerdização” do governo e de “proletarização da sociedade”. A meta era conquistar a adesão, sobretudo, das classes médias e de setores conservadores, além da penetração junto a uma parcela considerável da alta oficialidade militar, com perfil elitista, anticomunista e americanófilo.
Se a extrema direita na Europa usa o discurso contra imigrantes, na América Latina usa o fantasma do comunismo. No discurso dos nossos extremistas, há uma associação direta entre ser progressista e o “fantasma do comunismo”. Qual é a sua análise sobre isso?
Sem exceção, o anticomunismo é o elo entre todos os intentos golpistas e os golpes de Estado, aqui e na América Latina. A exacerbação do anticomunismo tem a ver com o receio das classes dominantes quanto a possíveis efeitos de transformações políticas e culturais na produção de crenças, mentalidades e juízos que incidem na conformação do imaginário social, tradicionalmente sob seu raio de influência. Trata-se de convencer a opinião pública a respeito de ameaças hipoteticamente representadas pelo comunismo nos âmbitos da moral, da religião, da família e da pátria. A pregação golpista em 1964 buscava apavorar as classes médias com a ideia-força da “República sindicalista” que Jango estaria a um passo de implantar. O chamado “perigo vermelho” extrapola a força real dos comunistas e é usado como antídoto ideológico à ascensão social das classes populares, com o indesejável questionamento das hierarquias vigentes. A estratégia discursiva anticomunista consiste em infundir medo e insegurança em relação a mudanças que possam afetar as conveniências do conservadorismo e a sua hegemonia político-cultural. Tais mistificações e engodos servem para persuadir setores sociais a aceitarem intervenções autoritárias.
Este discurso anticomunista entrou no caldo que culminou com a depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Se, em 1964, os militares foram às ruas para derrubar um governo que tinha altos índices de aprovação e, depois, tratou de dar pinceladas de clamor popular, na intentona para invalidar a eleição de Lula, tivemos o contrário. Apoiadores de Bolsonaro foram estimulados a clamar por “intervenção militar” nas portas dos quartéis. O que dizer disso?
São contextos históricos e políticos distintos, ainda que possamos invocar determinadas intenções golpistas no meio militar, com métodos e alcances específicos. Em 1964, convém insistir, o golpismo militar e civil jamais se apoiou em ações improvisadas ou voluntaristas; ao contrário, as operações de guerra ideológica, política e cultural foram pensadas e postas em prática dentro de uma lógica de descrédito e desestabilização do governo Goulart. Por sua vez, erros políticos foram cometidos pelas forças progressistas, como as rebeliões da baixa oficialidade e dos praças, principalmente as dos sargentos em 1963 e dos marinheiros em 1964, apoiados por quase toda a esquerda da época. Se as reivindicações eram, indiscutivelmente, legítimas, as mobilizações a céu aberto e a anistia dos marinheiros amotinados quebraram o princípio basilar da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas. Esses erros deram os pretextos que faltavam à alta oficialidade golpista para depor Jango.
No livro, você fala da importância de entender as causas da derrota da esquerda brasileira em 1964. Na sua opinião, as jornadas de junho de 2013 que buscaram tensionar o governo de Dilma Rousseff para maiores avanços não acabaram sendo instrumentalizadas pela direita, que, por sua vez, derrubaram a presidente e prepararam o país para a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018?
As jornadas de junho de 2013 comportaram ações políticas e reivindicações difusas, que mesclavam apelos golpistas com insatisfações em relação ao governo de Dilma Rousseff. Numa visão retrospectiva, as manifestações acabaram sendo instrumentalizadas pelo conservadorismo e serviram de caldo de cultura para a posterior organização da extrema direita e áreas conexas, notadamente nas redes sociais. No convulsionado quadro de 2013, talvez a esquerda, em seu conjunto, não tenha percebido a importância de se contrapor, mais resolutamente, em defesa da democracia e do respeito à legalidade. Ressalvando as diferentes circunstâncias políticas, é factível estabelecer uma analogia entre o sucedido em 2013 com a falta de clareza de segmentos ponderáveis da esquerda em 1964 quanto à necessidade de se resguardar o estado democrático de direito, acima de seus projetos políticos e das ambições imediatas. Só os incautos ou ingênuos não notaram a escalada da conspiração golpista a partir do segundo semestre de 1963. E mesmo quem notou nem sempre soube articular iniciativas para tentar detê-la.
Se você fala que em 1964 houve uma derrota da esquerda, que nos legou 21 anos de ditadura, a derrota de Bolsonaro para Lula em 2022, seguida do fracasso da tentativa de golpe de 8 de janeiro, poderia ser encarada como uma derrota de quem apostou tudo em uma virada de mesa dos militares ou, como diria a canção de Caetano Veloso, imortalizada por Gal Costa, “é preciso estar atento e forte”?
O verso da canção de Caetano Veloso, bem lembrado, me parece essencial, tanto nos nossos dias quanto na moldura de 60 anos atrás. Do ponto de vista das forças progressistas e de esquerda, cabe ressaltar a exigência crucial de “estar atento e forte” em relação a inimigos poderosos na arena política e ideológica. Em 1964, as esquerdas, divididas, não souberam avaliar adequadamente a correlação de forças real na sociedade brasileira, nem construir a unidade exigida na diversidade, muito menos traçar planos de voo sólidos para enfrentar a batalha das ideias pela hegemonia política e cultural. Em várias situações, o campo nacional-popular direcionava mais as suas energias para as cobranças a Jango pelo fim da conciliação com a burguesia, bem como se enredava em disputas internas, descuidando-se dos embates com a direita golpista, em franca ascensão. As esquerdas não tinham a força que imaginavam ter, nem estavam devidamente atentas aos movimentos sinuosos dos adversários. Já a direita e a extrema direita percorreram itinerários coerentes com seus propósitos: traçaram objetivos comuns, seduziram segmentos da sociedade civil com campanhas insidiosas e elegeram o golpe de Estado como solução final. Na atualidade, penso que “estar atento e forte” passa por combinar conscientização com ação.
O que significa?
Significa, em primeiro lugar, ter consciência de que a extrema direita e a direita mais reacionária seguem muito ativas na “guerra cultural” nas redes sociais, movendo combates sistemáticos à esquerda; intensificam a preparação para as eleições de 2024 e 2026, e detêm, conforme recentes pesquisas, um percentual expressivo nas intenções de votos.
Em segundo lugar, entendo que as forças progressistas e de esquerda não poderão prosseguir por muito mais tempo na relativa paralisia em que se encontram, praticamente entrincheiradas em torno do governo Lula, como se fosse o pior dos pecados explicitar o senso crítico em relação a determinadas decisões governamentais. Para se fortalecer, terão que voltar às ruas e desenvolver a sua vocação de luta, dentro e fora das redes, com vistas à organização popular e às mobilizações em defesa da democracia e das reivindicações mais urgentes dos trabalhadores e da cidadania em geral.
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Dênis de Moraes (Foto: Arquivo Pessoal) e o Golpe de 1964 (Foto: Arquivo Nacional) | Arte: Extra Classe